Prosseguimos com os textos que nos são propostos à publicação neste portal e atendemos à sugestão de Urda Alice Klueger (Cadeira 2), feita na primeira quinzena deste outubro, de abrir espaço para a memória dos acadêmicos.

Inauguramos a seção com um relato de viagem feito por Maria Tereza de Queiroz Piacentini (Cadeira 21) e o fazemos com texto de autoria feminina para realçar a presença de mulheres em nossa Academia, que, diferentemente de outras de suas congêneres, soube discernir a presença dos requisitos para a Casa também em autoras, uma vez que Delminda Silveira e Maura Senna Pereira ocuparam já em seus inícios as cadeiras 10 e 38, respectivamente. Por feliz coincidência, quem primeiro atendeu à sugestão da blumenauense foi a joaçabense.

Coordenador deste portal, conto com Valmor Fritsche na execução deste projeto, e lembro as palavras de Salomão Ribas Junior (Cadeira 38) e de Moacir Pereira (Cadeira 2, atual presidente da Casa) quando me persuadiram a aceitar este encargo: “você tem experiência de editor e vai acertar-se às mil maravilhas com o Valmor”. Pois é, espero que seja recíproco para meu operoso auxiliar, uma vez que é muito exigido e sempre atende com presteza e competência, duo raro hoje nos blogues, nos portais e de resto na mídia nacional, marcada por lacunas extraordinárias.

Não pretendo romper nenhuma confidência – afinal, ex-seminarista, apreendi bem cedo os benefícios dos sigilos eternos – mas destaco, por comovente e necessário, o motivo das aspas no título: é homenagem a Sérgio Pretto, que dirigiu a peça de teatro “Feliz viagem a Trento” em Joaçaba, cidade onde morreu de desastre de avião, aos 38 anos.

Vamos aguardar a brotação da memória de outros acadêmicos, não sendo necessário que os textos sejam de viagens, embora estejamos já previamente interessados nas aventuras de nossa vice-presidente no Egito e na Índia para compor a trilogia que ela já imaginou.

Um dia todos faremos a grande viagem, aquela em cujo trajeto para o Outro Mundo os antigos imaginaram encontrar o barqueiro Caronte exigindo a competente moeda como passe para atravessar o rio Estige no meio de brumas, dado que o lado misterioso da morte tem tido belíssimas expressões literárias como esta metáfora, tão bem vista nos desenhos de Gustave Doré ao ilustrar a Divina Comédia.

Uns vão antes, outros vão depois, mas o certo é que todos um dia irão, pois se muitos têm dúvida de que haja vida depois da morte, sabem que morte depois da vida sempre tem havido, mesmo para os que ressuscitam. Neste breve intervalo que é a vida, escrevamos, viver é escrever, como dizia na coleção de lembranças em forma de entrevistas com escritores a saudosa Edla van Steen, cuja morte em pleno processo eleitoral impediu que a elegêssemos.

Tornei-me editor de Maria Tereza de Queiroz Piacentini muito antes de que ambos chegássemos a esta Casa. Por sutis complexidades das respectivas existências de cada um de nós, nem sempre são os mais próximos que nos veem, percebem e leem, e isso tem alguma importância, mas não impede que o talento floresça.

Também conheço o percurso da autora que fez a sugestão e já enviou textos para este portal. Urda Alice Klueger, romancista e professora de História, sempre realça a dimensão do tempo e de seu registro nos textos que publica, sejam livros, sejam textos esparsos.

Bem-vindas as duas acadêmicas, pois: aquela que deu a sugestão e aquela que a atendeu enviando o primeiro texto para inaugurá-la.

Que venham mais textos, deste teor ou de outro, mas que venham, o que sempre importará é a qualidade.

Vamos ao texto de Maria Tereza. “Há braços” a todos, do Deonísio da Silva (Cadeira 5).

FELIZ VIAGEM A QUITO

Por Maria Tereza de Queiroz Piacentini

De 18 a 25 de novembro de 2014 estive no Equador, encerrando com chave de ouro meu périplo por todos os países da América do Sul (exceto as Guianas). Às vezes eu me sentia como se estivesse fazendo uma viagem no tempo, não só pelo ambiente como por ver ali, naquelas ruas vetustas, crianças e jovens vestindo uniforme escolar (menininhas de saia de xadrez vermelho, rapazes universitários com gravata e paletó de mescla cinza-claro).

Estive apenas em Quito, cidade de 500 anos situada a cerca de 2.800 metros acima do nível do mar, no noroeste do país, e com uma população de 2,2 milhões de habitantes. Há quase dois anos foi inaugurado um novo aeroporto a 40 km do centro. Eu não sabia disso, pois na internet dizia que meu hotel ficava “a 15 minutos do aeroporto”. Cheguei às 10 h da noite e a “viagem” parecia não acabar – passamos por uns três povoados. E eu pensei: “Isto vai me custar os olhos da cara”, mas o motorista cobrou só US$ 26.00 (a moeda local é o dólar americano).

HOSPEDAGEM

O Hostal onde fiquei tem só 12 quartos; foi instalado numa casa que pertenceu à Embaixada da Grã-Bretanha e por isso tombada pelo patrimônio histórico; é muito bem situado, rua calma mas perto do agito: comércio, restaurantes, Teatro Nacional, Museo Nacional (excelente), Casa de la Cultura Equatoriana (onde assisti a dois filmes grátis de um festival de cinema francês), inclusive de ônibus (“ecovía”, tipo Curitiba).

CURIOSIDADE QUITEÑA

Não sei se faz parte da cultura local ou se não estão acostumados a ver brasileiros (os únicos falantes de português que ouvi foi no Mercado Artesanal La Mariscal), mas muita gente a toda hora me fazia perguntas do tipo “donde viene? está sola? qué hace?” E diante das manifestações de espanto pelo fato de uma mulher viajar sozinha, eu adiantava que tinha marido e filhos, que ele tinha ficado trabalhando… E aí queriam saber a profissão dele também, e numa loja a mulher chegou a comentar: “Engenheiro? Mas então ele ganha bem!” Isso significava que eu poderia comprar o artigo mais caro. Hahaha. Até que na segunda noite eu peguei um táxi e, à pergunta dele “está viajando sola?”, resolvi dizer que eu estava com uma amiga que me esperava no hotel…LOCOMOÇÃO

Num blog de viagens tinham recomendado andar só de táxi, que é bem baratinho, mas para ir e vir do Centro Histórico achei melhor pegar ônibus, que levava menos tempo. A cada entrada no “tubo” se paga 25 centavos de dólar, em geral depositando uma só moeda na máquina (quem puser uma de 50 vai perder 25 centavos).

IDA E VOLTA – “Mais vale um gosto que um vintém”

Pela primeira vez eu mesma comprei a passagem por internet, sendo um dos trechos com milhas. Saí de casa às 5h30 da manhã: depois, São Paulo – Santiago, onde eu pegaria um voo da TAM “classe executiva”. Então eu tinha me imaginado tomando champanhe e dormindo bem esticada durante cinco horas e meia! Bem, o voo foi operado pela LAN e a cadeira mal reclinava – era apenas um Premium Economy, em que a maior vantagem é não ter nenhuma pessoa no assento do lado. Curti o jantar em louça e talheres de verdade, com opção de vinho e uma sobremesa deliciosa. Mas só no retorno realmente senti que tinha valido a pena pagar esse tanto a mais.

Roteiro: Quito – Lima – Santiago – São Paulo – Florianópolis. Saí às 5h do Hostel no dia 26 e cheguei em casa no dia 27 à meia-noite! Na sala vip de Quito tomei um excelente café da manhã e lamentei não poder aproveitar as chaises-longues! Em Lima, então, onde fiquei por sete horas, achei a sala VIP o máximo: um bufê ótimo, quatro salões distintos (para TVs, leitura, bar e refeições), fora a sala de descanso, onde dormi uma hora. Ao me aproximar do check-in ouvi o meu nome no alto-falante e o de três homens: tínhamos sido selecionados aleatoriamente para verificação da bagagem na polícia federal: “Tragam a chave da mala”, e lá fomos nós; depois de o policial ter encontrado muitos pacotes de cigarro na mala de um gajo (e de cada pacote ele abriu um cigarro), foi moleza para ele ver só roupa e duas mantas artesanais quitenhas na minha bagagem.

O problema nesse voo foi o sujeito malcheiroso que ocupou o assento vizinho (com a cadeira vaga no meio – mesmo assim…). Cheguei em Santiago às 23h40, dormi num Ibis relativamente perto do aeroporto e na manhã seguinte tive 40 minutos para andar ali por perto; de interessante só achei a Universidad de Santiago de Chile, onde visitei três pátios internos. Motoristas chilenos discretos: não fizeram pergunta alguma sobre minha procedência, ufa!

Sobrevoar os Andes na ida e na volta foi inesquecível!

SÁBADO DE SOL – Liberdade no parque

Em Quito já começa a época de chuvas em novembro (vai até maio), embora não seja chuva contínua nem forte. Então nos primeiros quatro dias saí com abrigo, mais capuz ou touca de lã na cabeça. Mas no sábado fez um dia de sol esplendoroso! Comecei indo ao Parque Carolina, o maior da cidade, bem central, onde passei horas agradabilíssimas, observando o povo, as barraquinhas, parando à la vonté para tomar suco de naranja, zanahoria e toranja ou comer deliciosas siriguelas, ou manga dura (pois verde) e já cortada em pedaços, picolé de coco – o melhor que já experimentei. Parei para ver os tipos de comida, como “ceviche de choclo” e algumas coisas estranhas para mim. No meio do parque se encontra o Museo Ecuatoriano de Ciencias Naturales, que não visitei porque fecha no fim de semana, e ao lado o Jardim Botânico, bem didático, uma beleza!

À tarde fui visitar a Capilla del Hombre, obra monumental do mais famoso artista plástico equatoriano, Oswaldo Guayasamín (1919-1999), assim como a casa enorme e maravilhosa que ele também projetou e decorou, a qual depois de sua morte inesperada, numa cirurgia nos EUA, tornou-se museu (ele obteve em vida a concordância dos sete filhos para doar tudo ao Estado). Na volta passei pelo bairro “donde viven los ricos”, segundo me disse o motorista, e achei tudo muito bonito.

COMIDAS – A vegetariana que quase se torna carnívora

Já no avião tive que comer um filé, pois agora que se descobriu minha intolerância a glúten não tenho a opção da massa.

No primeiro dia escolhi um dos lugares, em meio a dezenas, que oferecem “almuerzo” popular, pois no centro histórico – lembrando Ouro Preto – a vida se passa em torno da população que ali vive mais do que do turista. Menu do dia por dois dólares! Achei limpinho, conversei com o filho do dono (Gabriel, de 5 anos) e escolhi pollo (frango) ensopado como opção de carne no prato principal, acompanhado de arroz, saladinha e um pedacinho da deliciosa banana-da-terra presente em quase toda refeição. A sopa veio fumegante e cheirosa, com leve perfume de coentro, que apesar de eu não gostar, no Equador adorei, pois sempre muito sutil. O problema é que, antes mesmo de acabar de comer, tive que sair correndo para o banheiro. Talvez tenha sido o pão integral que comi no café da manhã, não sei. Conclusão: no dia seguinte passei numa farmácia para comprar remédio e depois numa panificadora, que não tendo nada sem glúten à venda, propôs me preparar “bizcochos” e um pão só de farinha de milho.

Em Quito reparei que sopa é a entrada. Tomei cinco sopas diferentes, tendo se sobressaído a de quinoa. Por duas vezes almocei no restaurante do Centro Cultural Metropolitano, um espaço muito vivo, com exposições, aulas e biblioteca, numa bela edificação antiga com intervenções modernas. E o restaurante tinha, além do “menú del dia”, pratos vegetarianos. Ali fiz o meu almoço mais caro, gostoso e lindo: 11 dólares, incluindo a gorjeta. Noutra ocasião, num dos restaurantes típicos, comi bolinhos de aipim e milho com guacamole. Mas não fui além disso…

VISITAS

Foi de impressionar não só a beleza mas a competência museográfica de todos estes lugares:

Museu da Cidade – localizado num hospital que funcionou por mais de 400 anos, até 1974. Gostei muito!

Museo del Carmen Alto – patrimônio e vida carmelita, museu recente, interessantíssimo para mim, que sempre tive atração pelo claustro.

Palacio de Carondelet, sede do governo – belo e admirável com seus vasos enormes de rosas que são trocadas semanalmente (a exportação de rosas representa 3% do PIB do Equador); um deles tinha rosas enormes com um tom fúcsia como jamais vi igual. Depois da visita guiada de 40 min, eles devolvem nosso documento com uma foto que tiram de cada família. Sozinha, mereci uma também. Tudo sem pagar nada!

Basílica del Voto Nacional (constr. 1892-1909) – subi de elevador até certo ponto, mas não me arrisquei nas escadinhas que levam às torres; preferi me sentar na cafeteria e tomar um chá observando a cidade abaixo.

Catedral Primada de Quito – fundada em 1535, era feita de barro e palha; em 1562 começou a ser construído novo edifício, em que se observa uma mistura de estilos. É bem colorida, de um verde forte. No museu da catedral vi belíssimas custódias (peças de ouro ou prata para guardar hóstias), mitras e capas, tudo muito precioso, una colección de ornamento y orfebrería única en su género. (coleção de ornamentos e artesanato única no gênero)

Iglesia y Convento de San Agustín – Igreja antiquíssima, tanto que não se permitem fotos; povo muito devoto rezando.

Iglesia y Convento de Santo Domingo – no museo dominicano visita-se o salão do antigo refeitório, onde há pinturas de dezenas dos 300 padres mártires do Equador na época da Inquisição e uma frase sobre como foram mortos. A descrição que mais me chocou foi daquele que “lhe tiraram os olhos e o fizeram comê-los”.

Iglesia de la Companía de Jesús – igreja-museu, passou por 19 anos de restauração, durante os quais houve um incêndio num dos altares laterais; tendo o ouro derretido, ele teve de ser folheado novamente, por isso é mais “dourado” que os demais; além disso, a fumaça preteou toda a cúpula, na qual tiveram que refazer a limpeza, deixando porém um anjinho enegrecido. Esta igreja é a expressão máxima do barroco no país, com estilo “mudejar” (árabe) nas colunas e teto, em tons vermelho e azul pastel, certos altares lembrando o “churrigueresco” (mexicano). Quando entrei e vi aquilo tudo tão, tão lindo, caí no choro, o que só tinha me acontecido numa capela dentro da catedral de Puebla, no México. E dois dias depois voltei lá para assistir a um concerto do conjunto Harpa Dei: as duas moças e o rapaz (irmãos) cantavam como anjos, e me transportei ao céu.

Iglesia y Convento de San Francisco – é a igreja mais antiga; os franciscanos se estabeleceram no Equador em 1534. Eu me abstraí dos trabalhos de restauração que estão fazendo no lado direito e novamente chorei de emoção e de agradecimento a Deus pela oportunidade de ver tantas maravilhas!