Deonísio da Silva (*)

Machado de Assis, a maior referência literária brasileira, fez aniversário de nascimento em 21 de junho. Nasceu em 1839 e morreu antes do setenta anos, em 1908. Ficou esquecido por décadas e voltou a ser lembrado por obra de uma mulher, a sua biógrafa Lúcia Miguel Pereira, autora de um livro indispensável para compreender o gênio que era pobre, epiléptico, gago, descendente de escravos, órfão, sem formação escolar regular e sem ter filhos, tendo compensado todas essas adversidades, ainda mais graves por causa da época em que viveu, com seu talento, seu trabalho e sua persistência.

No começo, ele vendia menos de 100 exemplares de seus primeiros livros. E ficava muito feliz, não por vender, mas por publicar. Já tacitamente reconhecido como grande escritor, vendia 1.000 exemplares de seus grandes sucessos.

Em Petrópolis (RJ), ainda existe o prédio que era sede do jornal para o qual colaborava, cujas publicações somente foram identificadas e recolhidas por Mauro Rosso há alguns anos e não estão em suas obras ditas completas publicadas pela editora Aguilar e pela Academia Brasileira de Letras.

Certa vez, já morando no Rio, falei com um morador do bairro Cosme Velho que residia no lugar onde Joaquim Maria viveu seus últimos anos.Deve ter sido o escritor que morou em mais endereços do Rio. Esse morador me contou que o cunhado de Machado de Assis, o poeta português Faustino de Novais, era proprietário de um dos imóveis onde Machado e Carolina moravam e escrevia cartas ameaçando de despejo o casal por causa de aluguéis atrasados.

Todo junho, à chegada do inverno, lembro que ele faz aniversário em junho e penso: quem mais se lembrará disso?Sei de alguns que se lembram e sabem que para nós, brasileiros, a data é mais importante do que o Bloom’s Day, de James Joyce. Muitos registram seu nome ou trechos de seus livros, mas somente quem o lê com frequência é capaz do desfrute delicioso.

Eis um trecho magistral de um de seus romances, Memorial de Aires:

“Capítulo 43:
Tabuleta nova
– Mas o que é que há? – perguntou Aires. – A República está proclamada. – Já há governo? – Penso que já (…). Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. – “Confeitaria do Império”, a tinta é viva e bonita. (…)V. Exa. crê que, se ficar “Império”, venham quebrar-me as vidraças? (…) – Mas pode pôr “Confeitaria da República”…
– Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro. – Tem razão… Sente-se. (…) Aires propôs-lhe um meio-termo, um título que iria com ambas as hipóteses, – “Confeitaria do Governo”. – Tanto serve para um regime como para outro”.

Machado de Assis ainda paga o preço daquela falta de instinto nacional para os estudos literários de boa parte da inteligência brasileira, pois todos sabiam ler e interpretavam muito bem o romance Dom Casmurro até que a americana Helen Caldwell inventou que a obra machadiana não era machadiana, mas, sim, radicada em Shakespeare. E publicou o ensaio The Brazilian Otelo (o Otelo brasileiro). Foi o que bastou. Muitos professores e ensaístas passaram a pontificar que no lugar de todas as evidências do adultério e da traição de Capitu com o melhor amigo do marido havia uma jazida de dúvidas, que passaram a elencar. E Capitu recebeu, não a absolvição e indulgências plenárias apenas, mas um atestado de que não dava a mínima para Escobar, que talvez fosse até namorado do marido…

Nada disso, porém, empana o brilho de qualquer página de poesia, romance, conto, crônica, ensaio ou qualquer outro gênero literário que ele tenha praticado. Ele tinha o que dizer e sabia como fazê-lo – duas marcas de todo bom escritor.

(*) O escritor Deonísio da Silva, da Academia das Ciências de Lisboa na Classe de Letras, é Doutor em Letras pela USP e autor de cinquenta livros, entre romances, contos, ensaios e infantojuvenis. Nasceu em Siderópolis (SC) e mora no Rio de Janeiro (RJ).