Acadêmico e professor José Isaac Pilati (Cadeira n. 14) comenta a obra “Marcelino”, de Godofredo de Oliveira Neto.

Por José Isaac Pilati

Cadeira 14 da ACL

Fazia tempo que eu não lia um romance de cabo a rabo sem parar; assim, como quem volta à infância e sobe em árvore, para saborear as deliciosas páginas de 111 capítulos bem articulados e construídos em Marcelino, de Godofredo de Oliveira Neto. Capa dura e colorida – ignorei os verbetes da contracapa, onde me aguardavam, certamente, os comentários de leitores e literatos de maior gabarito; mas tive impressão de que o nome do autor e o título avistavam do alto, nas imagens do passado, o que eu ainda não vira na leitura; mérito da Editora (Ímã do Rio de Janeiro), com certeza, tal qual o fazem os diretores, no cinema.

Ao final da leitura, ainda curando as escoriações de ter caído lá de cima, resumo as impressões que me ficaram: o livro começa como as receitas de bolo de casamento, quebrando dois ovos, um contra o outro, os dois primeiros capítulos. Um deles os anos trinta do interior da Ilha de Santa Catarina e o outro o Rio de Janeiro da época, na iminência da Segunda Guerra. Getúlio, nazismo, corrupção e curiosidades da carne jovem sãos ingredientes logo acrescentados à farinha de um estilo denso, rico e minucioso no vocabulário, para tristeza do sujeito aquele que propôs simplificar Machado de Assis para a mocidade estudiosa.

Perante esses dois mundos, como dois senhores na bíblia, Marcelino o ilhéu detinha aquele encanto da idade, que levara Mozart à Corte e ao colo da Rainha; aquele doce embalo que enleva a pessoa às alturas, onde o sol derrete as asas de quem nasceu para viver ao rés do chão. O fim do livro transpira emoção do autor; quando Marcelino sobe a árvore e sofre lá de cima o duríssimo raleio das ilusões. Como é duro na vida morrer o que não se é, o que não poderia ter sido; juntar o que sobrou de si mesmo para viver entre os simples, na singeleza e no verdadeiro afeto. O outro mundo prosseguiu, e eu comi um pedaço do bolo dos noivos.

Fi-lo como diz Vinícius de Moraes: comovido e risonho, escutando as verdades e as mentiras de uma época sabichona. Um tempo em que um vírus assentou-se à direita de Deus Padre e raqueou a lista dos desígnios, matando bons e maus, de preferência os pobres, à semelhança do exército romano, que os colocava na primeira fileira à frente do inimigo descansado. Mas não passou despercebida a citação de o Emparedado, no romance de Godofredo, de 2019. É verdade. Em tempo tão difícil, a Arte e a ACL foram loureirais de mirtos e palmas verdes e hosanas para enfrentarmos e superarmos a fadiga de um século lacerado.