Texto de Urda Alice Klueger (*)

Há coisas que ficam escondidas por décadas dentro da gente e afloram assim, espontaneamente. Senti-me dentro do livro Decameron, hoje, de Boccaccio, escrito no século XIV, tendo como pano de fundo a peste negra. Naquela altura não se sabia como a peste se disseminava, e então aconteceu como sempre: os pobres foram deixados para morrer, enquanto jovens da nobreza fugiam para um castelo sobre uma montanha muito alta. A partir da vida, pensamentos e sentimentos desses jovens, Boccaccio escreveu sua obra-prima.

Em maio de 1983 eu passei férias no Rio de Janeiro. Dentre mais alguns livros, levei Decameron para ler em Copacabana, e sentava-me na areia da praia, nas tardes, e lia aqueles textos oriundos de uma peste, sem nem me passar pela mente que um dia passaria por situação semelhante.

Então agora afloram aquelas cálidas e luminosas tardes de Copacabana dentro de mim, com toda a intensidade de vida, regadas à água de coco e cuba-libres e à coisa fascinante, para mim, de ver tanta gente estrangeira esticada na areia por ali. Colona de Santa Catarina, estar numa praia multinacional como aquela era uma surpresa inesperada e fascinante, e vezes sem conta eu me desviava da leitura para ficar observando as pessoas ou ouvindo suas línguas diferentes, eu que mal e mal ouvira falar o alemão e um pouco de espanhol da boca de alguns argentinos perdidos por Balneário Camboriú!

Recordo agora como descobrira a estrangeirice daquela gente: no primeiro dia no Rio, biquíni cor de rosa, saíra a caminhar desde Copacabana até Ipanema, tirando algumas fotos com a pobre Kodak que tinha então. Já em Ipanema, achei que era tempo de um banho de mar, e olhei em volta, tentando me orientar sobre o que fazer. Claro que levava embutida algo que a nossa educação nos enfia goela abaixo: gente assim morena, mulata, como havia pela praia, era para desconfiar um pouco, Jessé Souza que o diga!

Mas tinha uma moça e dois rapazes ali por perto, bem brancos, avermelhados de sol, a moça ruiva – gente do Sul, com certeza, mais digna de confiança, outra barbaridade que nos enfiaram goela abaixo. Aproximei-me e perguntei se poderia deixar minha bolsa com eles e, espantada, vi-os responder numa língua bem desconhecida! Entendemo-nos por sinais e fui ao banho, curiosíssima: que gente seria aquela? Voltei e fiquei perto deles, tentando decifrá-los, e acabei descobrindo que eram holandeses, nem lembro mais através de que forma. Holandeses! Nunca vira nenhum, nem conhecia alguém que já vira! Quis deixar alguma coisa em troca para eles, dizer-lhes que estavam na famosa praia da Garota de Ipanema e, solfejando a música, apontando para o chão e usando meu raquítico inglês de ginásio, contei-lhe tal coisa. Sorriram-me, atenciosos e agradecidos, conheciam a música, ficaram admirados por estarem ali!

Assim foi meu primeiro contato com estrangeiros que enchiam as praias do Rio de Janeiro. O mês inteiro estive curiosíssima com aquelas gentes desconhecidas e muitas vezes desviei os olhos do Decameron por causa de outros e outros, além de conversar também com brasileiros, claro, com quem tomava minhas águas de coco e meus cuba-libres. Vida intensa e cálida, e o Decameron ali comigo.

Adivinhem o que aconteceu: não terminei o Decameron, até hoje não terminei, e agora nem tenho mais o livro. Seria uma boa ocasião para terminá-lo, esta da Pandemia, não? Minha vizinha Maria Antônia disse-me que há um filme – há de estar no youtube!

E vamos vivendo, aqui, isolados e quietos, e lembranças tão antigas despertam inesperadamente. Penso que o isolamento durará alguns meses – o que mais tudo despertará dentro de mim? Oxalá sobreviva, como o pessoal de Boccaccio!

(*) Urda Alice Klueger

Escritora, historiadora e doutora em Geografia.

Praia de Ipanema, Rio de Janeiro