Outras palavras relacionadas à pandemia, como “covidiota” e “coronaplauso”, ficaram de fora da sexta edição do glossário da Academia Brasileira de Letras

Bolívar Torres

24/08/2021 – 04:30 / Atualizado em 24/08/2021 – 10:01

RIO — Se atualizar um dicionário já é difícil em condições normais, imagine em meio a uma pandemia que, em um curto período de tempo, acelerou o surgimento de palavras novas — e a ressignificação de outras. Com 382 mil entradas, a sexta edição do “Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa” (“Volp”), disponível exclusivamente na versão on-line no site da Academia Brasileira de Letras, enfrentou este desafio. Dos 1.160 verbetes inseridos nesta nova edição da obra, que é considerada o fiel da balança da língua pátria, 65 (cerca de 5% do total) estão ligados direta ou indiretamente ao contexto pandêmico, como “Covid-19”, “lockdown” e “trabalhador essencial”.

Mas houve também um número considerável de termos barrados pelos lexicógrafos. Alguns são curiosíssimos: “coronaplauso” (salva de palmas da população em quarentena como forma de agradecimento à dedicação dos trabalhadores da área de saúde), “coronababy” (criança nascida durante a pandemia) ou ainda “blursday” (impressão de que todos os dias são iguais na quarentena). Preteridos ou não, todos fazem parte do chamado “covidioma” — outro termo novo que, por ironia, acabou ficando de fora da lista.

— A pandemia trouxe esse estímulo a mais para os lexicógrafos — diz o acadêmico Evanildo Bechara, presidente da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL, que produz o “Volp”. — A sociedade passou por uma ebulição cultural e tecnológica e isso teve repercussão no uso da língua.

Produzida em parte ao longo da pandemia, a nova edição, no ar desde o mês passado, só foi possível graças a uma palavra que também faz sua estreia no “Volp”: “home office”. O uso do termo, aliás, é polêmico, já que a frase “I’m doing home office” (estou fazendo home office) não existe em inglês. Mas não tem problema. Basta dizer que, para levar a cabo sua tarefa, a equipe de Lexicologia e Lexicografia da instituição aderiu ao “teletrabalho” — termo que também estreou agora no dicionário.

Mesmo com as atividades presenciais da ABL suspensas, o trabalho de atualização continuou com muitas trocas de e-mails, mensagens de celular e o uso de “videoconferência”, esta tecnologia pandêmica que acaba de realizar o sonho do verbete próprio. Coisa de dar “nomofobia” (medo patológico de ficar sem acesso ao celular). Foi uma dinâmica inédita nos 75 anos de carreira de Bechara. Aos 93 anos, o professor aderiu ao confinamento, já que não é um “negacionista”. Sim, mais uma palavra recém-dicionarizada.

Estou aqui de passagem

O ingresso de um verbete novo depende de uma série de exigências. Em primeiro lugar, a sua criação precisa traduzir com eficiência a ideia que quem a empregou quis transmitir. Em segundo, não pode haver palavras antigas e mais expressivas que transmitam melhor a mesma ideia.

Também são levadas em consideração a frequência de uso, a presença em textos oficiais, jornalísticos, acadêmicos etc. e a relevância para a vida social. “Covidengue” e “covidivórcio” ingressaram no Real Academia Española, mas ficaram de fora do “Volp”. Ainda que tratem de fenômenos que também ocorreram no Brasil, tiveram, segundo a equipe da ABL, uma repercussão baixa ou inexistente por aqui.

— Há expressões que nasceram para situações específicas e que acabaram não tendo circulação na sociedade. É como se morressem em seu nascedouro — explica Bechara, que acaba de lançar o livro “Fatos e dúvidas de linguagem” (Nova Fronteira), uma reunião de seus estudos publicados ao longo da carreira.

Palavras existem para nomear a realidade que nos cercam. Mas nem sempre é necessário inventá-las. Autor do livro “De onde vêm as palavras: origens e curiosidades da língua portuguesa” e vice-presidente da Academia Brasileira de Filologia, Deonísio da Silva lembra que a crise sanitária não apenas enseja o surgimento de termos e expressões como também altera o significado das existentes. É o caso, por exemplo, de “comorbidade”, “imunossuprimido” e “média móvel”. Por sinal, “pandemia” não designou originalmente a peste. Foi precedida em séculos por “epidemia”, do mesmo étimo, observa Deonísio.

— Quantas destas novas palavras ou novos significados prevalecerão? Ainda é cedo para saber — diz ele. — O alemão já criou mais de mil palavras nessa pandemia. E com a habitual precisão. Aliás, chamar de pandemia e não peste, como antes, já me parece uma opção pelo eufemismo. Nós como que exorcizamos ou abençoamos as coisas com as palavras.

Responsável pela atualização do “Dicionário Aurélio”, Renata Menezes garante que a fábrica covidiana de expressões está longe de ser um pesadelo para um dicionarista. Pelo menos não para o “lexicógrafo-raiz”, que é como ela chama os apaixonados pelas palavras. Ainda que não façam mais parte do nosso dia a dia depois que a crise sanitária acabar, afirma Renata, os novos termos estão fadados a se eternizar por meio de diferentes registros (científicos, históricos, literários, jornalísticos, lexicográficos…).

— Que esse momento chegue logo e que tenhamos, de fato, aprendido algo com a pandemia, não é mesmo? — diz a consultora de lexicografia das obras “Aurélio”.

Palavras aprovadas

Infodemia. Volume excessivo de informações sobre determinado assunto, que se multiplicam e se propagam de forma rápida e incontrolável.

Oligossintomático. Que apresenta poucos ou leves sintomas (de determinada doença).

Trabalhador essencial. Profissional que, em virtude da natureza de sua função, foi autorizado pelo governo a continuar trabalhando presencialmente durante a fase de restrição de circulação de pessoas em meio à pandemia do novo coronavírus.

Nomofobia. Medo patológico de ficar sem acesso ao telefone celular (internet, redes sociais, aplicativos, contatos, fotos e funções em geral) ou dispositivos eletrônicos semelhantes, como computador ou tablet.

Palavras rejeitadas

Covidiota. Aquele que se nega a cumprir as normas sanitárias estabelecidas para evitar o contágio e a disseminação da Covid-19.

Blursday. Impressão, durante a quarentena, de que todos os dias são iguais.

Coronaplauso. Salva de palmas da população em quarentena como forma de agradecimento à dedicação dos trabalhadores da área da saúde.

Covidivórcio. Divórcio ocorrido por causa do confinamento.

Coronababy. Criança nascida durante a pandemia.

Fonte: jornal O Globo, 24/08/2021

(https://oglobo.globo.com/cultura/de-lockdown-coronaplauso-saiba-as-palavras-que-entraram-as-que-foram-vetadas-no-dicionario-da-abl-25165121)

Pandemia acabou gerando uma série de novas expressões – e também deu novo sentido e relevância a outras já existentes

Foto: Arte Gustavo Almeida / Agência O Globo