Acadêmico Marcos Laffin, titular da Cadeira 9 da ACL, analisa a obra “nem parece que é AVESSO”, em carta-apreciação enviada à autora.
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Florianópolis, 8 de setembro de 2022
Estimada Poeta
Teca Mascarenhas, Cadeira 25
Neste seu livro “nem parece que é AVESSO” (2020), encontro e existem sinais de alerta. A epígrafe de Hannah Arendt pretende indicar que tudo pode e poderia ser diferente – porque tudo que é humano depende da ação humana. Na sequência, como quem brinca com toda a dependência humana em si mesma, a epígrafe de Hilda Hilst insinua que tudo o que fazemos ou que venhamos a fazer de nós se fundamenta num inconsciente, talvez tangível, de uma solidão. Tanto em Arendt, quanto em Hilst teremos que enfrentar o outro como parte de uma solidão ‘nossa’. Esses sinais acompanharam a minha leitura e tudo o que eu aqui disser nesta escrita ressoa da poesia que degela desse outro, que emerge da construção da poeta Teca Mascarenhas que intensamente anuncia sinos com palavras e sentidos.
A natureza, como natureza viva dentro das catedrais, expressa referências construídas como campo santo dos anonimatos e vai tangenciando todo o escuro que se quer e se faz silêncio em seus versos. Mas o silêncio se transforma em grito de isolamento na busca de outra consciência diante da palavra-sentida, palavra-partida.
Em seus poemas, se me coloco no lugar do outro e não vivo esse outro e nesse outro lugar, então me condeno à nostalgia de um nervo exposto. Aqui um universo se retrai. O outro vai se construindo em dobraduras ou, posso dizer, tecendo sensibilidades que contrastam o peso de amar. É esse amar, como necessidade do humano, para agir de forma própria e irrenunciável que se faz compulsório na condição de uma vida.
Nas cavernas subterrâneas do poema, o eu que se espelha no outro, é entregue como possibilidade de um movimento para um agir. Mas se apenas esse eu se fizer reflexo do espelho, então o outro será um movimento em paralisia, vamos designando uma morte, mas que ainda não a temos.
Os caminhos ou estradas iluminadas facilmente se convertem em cegueira, pois buscam um ser de proteção e referência, levam cargas que o vento disfarça e descarrega como tempestade. A alma, essa disputa dos deuses, contrasta com um silêncio e com uma aflição, mas lá existe um sentir que inflama as invernadas.
O mar é presença sólida neste seu livro. O mar é presença sólida no livro que se diz que nem parece, mas é a forma degelada do outro na expectativa daquilo que arrasta como amor. O amor é tudo o que a liquidez do mar pode transformar. E, de repente, o amor é peso, mas também é voo de pássaro que ecoa no próprio voar, um canto de acasalamento silencioso.
As perdas da materialidade ou do sentir (!?), podem se desvelar amareladas, mas guardam memórias de esquecimentos improváveis. Contradições? Não. Voos cadenciados por palavras que são sinos disfarçando sinas. Ali, o paraíso ainda é promessa e soa em melindres como se fossem borboletas, enfeitando os olhos, macerando os temperos que regem a constância da vida.
Talvez, e somente talvez, a contingência da vida da poeta possa ser um universo tangível, assim como o violino que pode assumir a força avassaladora de silêncios e de bravuras. Como poeta-violino-pássaro não existem ingenuidades livres que se façam na forma de voar e assim, forjando o canto da palavra, a poeta não viola sua inocência com o som da sua virilidade.
O avesso, contestável de uma palavra sem rima, não é a mesma coisa que a palavra ausente para a falta de amor. A resposta se faz de poema-ponte, posto que a liberdade é coisa para ser vivida para além da fala e da escrita. Aqui, o eu e o outro são sempre espelhos que guardam sua ancestralidade como coisas, pessoas e sentimentos, se fazendo memória cotidiana e confidente do viver.
A poeta brinca e diz: nesta noite não farei poesia. Mas o outro que habita cada palavra do eu deixa de ser a penugem do pássaro, assume o corpo e nele se faz passageiro do voo. É assim que a entrega às vezes se faz de poesia, mas o gozo é sempre poesia.
Nem parece que é avesso, mas é o avesso que está à mostra se fazendo reverso, refletindo cada letra de intimidade e dela faz migração para as queimadas do sol. O mar encantado encanta e soletra os desencantos e faz do amor pluma e ferro de algo que já se experimentou, de algo que foi amado, de amar aquilo de que igual nunca terá. A existência do belo, como polaridade de toda e qualquer nuvem cinzenta, situação inquieta, é sempre uma procura, uma constante naquilo que a poeta chama de vida.
Tudo está na condição de semiaberta. Aqui existe um movimento feito no depois de se molhar na débil inspiração para tornar-se seca, mas, derradeira ao primeiro raiar, volta a ser alga quando o mar extravasa sobre mim o mar do teu olhar.
Onde estará o imaginário ato da criação? Está no mar, como um mantra – caverna e proteção –, de que tudo se faz nas urgências e na leveza das andorinhas. É assim que cada poema começa no seu nome, no seu título, no seu endereço do sentir, ali se mistura aos versos e nele se dilui em novos mistérios, óxido dos espelhos, para o regresso de tudo o que nos antecedeu.
A umidade do mar está em cada verso de erotismo. Nessa umidade o mar e seus peixes se fazem machos e colhem da alma o gemido. Depois num gozo feito tempestade os poemas se mostram como ninhos de pássaros. Neles, o silêncio é sempre recorrente, um silêncio que depois grita.
Porque a vida decorre de uma contingência, existe nesses versos um olhar de humanidade. Dessa humanidade esquecida nas esquinas. Nesse abatido chão a poesia se mostra como necessária para uma outra consciência: uma humanidade humana. É poesia que cobra presença em todo lugar. No lugar do eu e no lugar do outro porque se desconhece quem fechará meus olhos na hora da morte.
Depois do intervalo, no lado de dentro tem outro lado de dentro, que fica exposto de dentro para fora e que deseja ser visto pelo avesso. Nesse lugar, meio amor não ilumina, mas também nunca é inteiro, pois precisaria abandonar-se de si. Nesse intervalo, a poeta concentra sal nas palavras. Faz um tempero para duelar com a experiência do leitor, como quem espera um outro respirar.
O avesso, o mar, o abissal e o gosto do silêncio são escrituras que emergem do fundo do Atlântico. São esperanças por estarem vivas dentro da esperança, nisso se inscrevem em qualquer lugar de solidão ou em lugares intangíveis.
Os versos que se fazem desnudos estão sempre abertos à semeadura, à fecundação. Os versos estão à espera de demônios que são sempre dissimulados porque o que buscam são seus antônimos. Nessa construção do eu e do outro escorrem poemas necessários, de plantio diário, de regadas em cada despertar. Nesses poemas, os eus-outros-eus se fazem plurais, inteiros, livres. Nesses versos encontro e encanta-se a poesia da contingência.
Gostei de tudo. Das certezas e das incertezas. Gostei da matéria de onde nascem esses versos, como canto das não-esperas. Atravessei esse seu Atlântico no qual designa o eu e o outro, mas não se deixa enjaular, nem mesmo nos inconfessados avessos.
Acaso me pedisse para dizer algo eu lhe diria: Em tempos soturnos me fiz um beija-flor.
Um beijo na poesia que você desvela.
Marcos Laffin, Cadeira 9