O Acadêmico Salomão Ribas Junior, presidente da ACL, faz uma curiosa leitura do livro do confrade Deonísio da Silva (Cadeira 5), premiado escritor catarinense radicado no Rio de Janeiro

Salomão Ribas Jr (*)

O recolhimento compulsório desses tempos permitiu-me aumentar o meu tempo de leitura. Agora resolvi escrever um pouco sobre o que ando lendo. Reli livros que esqueci ter lido, outros mais recentes e, até mesmo, muitos atuais. Alguns editados no velho e bom papel com capa dura. Outros tantos no novo formato conhecido como e-book. Sempre relembrando o que disse Umberto Eco: “Não contem com o fim do livro”. (Editora Record, 2010, 272 p.)

O que pretendo escrever está muito longe de uma crítica literária. São apenas algumas impressões de um velho e persistente leitor de bem mais de meio século.

Começo por recente, em nova edição, contribuição de Deonísio da Silva. Esse mesmo que você pensou: o autor de “De onde vêm as palavras: origens e curiosidades do Português” (Edições 70; 18ª edição, 2021). Este é provavelmente o livro mais conhecido e mais citado do consagrado escritor. É comum entre os criadores serem conhecidos por uma obra. Isso vale para a música, o cinema, o teatro e não poderia ser diferente para a literatura. Qualquer dia desses, escrevo sobre “De onde vêm as palavras”, livro de consultas permanentes. Hoje quero registrar que Deonísio da Silva publicou quase quatro dezenas de livros. Quase todos com várias edições na América do Sul e na Europa. Fora os que estão em gestação, considerando-se a enorme capacidade criativa desse catarinense de Siderópolis. Ele é um nome nacional, reconhecido nos centros culturais mais importantes e, curiosamente, sem a mesma correspondência em terras catarinenses. Claro que já recebeu várias homenagens e prêmios, mas sem aquela difusão tão importante nos meios acadêmico e educacional, como seria de esperar. A lembrar que, além da Academia Catarinense de Letras, integra a Academia Brasileira de Filologia e a Academia de Ciências de Lisboa. Nome constantemente lembrado para integrar a Academia Brasileira de Letras.

O livro sobre o qual farei algumas observações de leitor é “Balada por Anita Garibaldi e outras histórias catarinautas”. Como disse acima, é uma nova edição, agora da Almedina no Brasil e em Portugal, com capa caprichada de Arlinda Volpato, a quem, junto com seu marido Wilson Volpato, o livro é dedicado. A eles e, creio, aos inúmeros leitores brasileiros, em especial aos catarinenses. Espero que os mais jovens se interessem para aumentarmos aquela reclamada difusão da obra de um catarinense que deu certo no Brasil, na Itália, em Portugal e nos demais países de língua portuguesa.

O conto-título – A Balada – não foi escrito, nem necessariamente reeditado, na onda avassaladora de textos em razão do bicentenário de Anita Garibaldi. Pode ser incluído, mas a experiência literária de há tempos, segundo o autor revela em esclarecedora nota de rodapé (p. 32 e seguintes).

Aos jovens leitores, renovando minha confiança na difusão dessa obra, esclareço eu que essa “balada” não tem nada a ver com as ruidosas “baladas noturnas” dos dias atuais. É balada no sentido do elogio poético à personagem histórica.

Classificado pelo autor e seu editor como conto, “A Balada” é um texto diferenciado, ora seguindo as regras básicas do conto, ora intercalando passagens que fogem à orientação clássica. O que enriquece sobremaneira o texto.

O autor confessa, na nota de rodapé referida, que era para ser um conto de amor. É, mas também é mais do que isso. O texto passeia com suavidade sobre a figura humana da personagem, aborda aspectos históricos, realça o seu heroísmo e coragem, espírito de liderança incomum e o mito em que se transformou Anita Garibaldi. Depois de uma pequena passagem pelo fantástico, chega ao mundo mágico de crença de gentes do litoral catarinense.

No começo da história há muito do amor pretendido quando a aproximação de Garibaldi da jovem é descrita com romantismo. Sua reação também, ainda que prisioneira dos usos e costumes da terra em que se encontram. Depois, Garibaldi é afastado do centro do palco, que passa a ser ocupado por Anita, a guerreira, a corajosa mulher que empurra os soldados nos combates nas águas fronteiriças com a Laguna. E que assume uma inesperada liderança na fuga rumo à Lages, ao Rio Grande do Sul e Uruguai, seguindo os passos de seu herói. Daí em diante há mais mito do que heroísmo, da mulher que se revela carregando nos braços uma criança.

É nesse ponto que salta em meio ao texto o fantástico, em curioso diálogo entre Bento Gonçalves, o líder dos farroupilhas, e Garibaldi, já mortos e analisando aspectos da Revolução Farroupilha. Mudanças de gênero literário que não apenas confundem o leitor, mas atiçam sua curiosidade. Sem resolver muitos dos mistérios tratados por historiadores de maneira diferenciada, a narrativa salta para mostrar Anita mitológica e fantástica, revivendo nas praias catarinenses. É uma grande história de uma curta vida, contada com maestria. Deonísio sabe contar uma história.

Seguem-se os outros contos catarinautas, em número de oito, destaco os que abordam aspectos de nossa burocracia e das curiosas técnicas investigatórias. É um mundo sui generis o dos burocratas e seus afazeres. Para rir encontramos o apego aos formulários e a redução das informações aos seus estreitos espaços. Encontramos na correta redação de Deonísio da Silva amostras das práticas opressoras que tiveram seu momento em períodos de governos ditatoriais no Brasil ou América Latina e na Europa. E que a burocracia teimosa por natureza ressuscita hodiernamente aqui e ali.

Curiosa a expressão catarinautas. Pesquisando, encontro a mesma expressão em artigo de Dante Mendonça, escritor que muitos acreditam paranaense – vive em Curitiba – mas é catarinense de Nova Trento. Dante conta que a expressão surgiu em razão de uma notícia falsa dizendo que o astronauta Charles Conrad Jr. teria nascido em Marata, localidade no interior de Porto União. Essa notícia repercutiu internacionalmente, levando a NASA, em nota à UPI, a desmentir a anunciada nacionalidade brasileira de Charles Conrad Junior. Se fosse verdade, Conrad seria o primeiro brasileiro a ir ao espaço. Tudo desmentido, o assunto virou lenda e aí surgiu o termo catarinauta. Dante diz que foi invenção de Deonísio e este diz que Dante é o autor. Assunto a discutir em outra oportunidade. Assim, entendamos que contos catarinautas são fruto de um olhar sobre Santa Catarina ou do olhar de um catarinense sobre o interior do Brasil, cenários dos contos escritos por Deonísio da Silva.

O conto seguinte, “A Mesa dos Inocentes”, no cenário do interior brasileiro como os demais, faz conhecer o curioso comportamento de uma viúva e um dos seus filhos. Viúva pela segunda vez, guardando os desejos de mulher. A mesa invocada faz parte do folclore da superstição. Com ela e por meio do que ela proporciona é possível o arrependimento e o perdão. Em meio à história, Deonísio acrescenta um mistério entre o que os papas criaram para uma boa reza. Trata-se do mistério escandaloso.

“Investigações Sem Nenhuma Suspeita” segue curiosa linha de investigação. Um cidadão sem culpa ou suspeita de nada é interrogado por um investigador apontado como hábil e eficiente por seus superiores. A partir de uma informação inocente (- Como é o nome de sua mãe?) arrasta o interrogado por um emaranhado de perguntas que o transformam em suspeito. Fica de voltar na sexta-feira seguinte, mas o investigador já o considera suspeito de estar roubando a pensão da própria mãe. Assustador e divertido, é outra boa história.

“Sedução” é um conto que chamou minha atenção pela descrição de fraquezas humanas. Uma delas é a desconfiança, a suspeita que pode construir um triste caminho e mesmo culminar numa desgraça. Tudo urdido pela imaginação, pela malquerença entre mulheres condenadas a viver juntas. Sem falar nas fraquezas dos desejos sexuais que povoam boa parte dos escritos. Ou da importância que se dá ao que podem estar falando os outros. Outra história deliciosa de quem sabe contar histórias, o autor Deonísio da Silva.

“Exposição de Motivos” e “Senhora Diretora”, dois contos que se completam na descrição de métodos inquisitoriais das investigações burocráticas. Vivenciado no ambiente escolar, tão conhecido do autor como aluno de tempo integral e professor. Uma dúvida a respeito de uma impropriedade que teria dito um professor, em discurso no Dia das Crianças, leva a uma devassa de sua vida profissional e pessoal, inclusive na intimidade de sua casa. Ou dos locais que costuma frequentar, o que faz, com quem anda e assim por diante. O que pensa não deixa de ser considerado ao longo da Exposição de Motivos. De outro lado, “Senhora Diretora” completa o ciclo levantando suspeita que é do “conhecimento” da Sra. Diretora. Os nomes ou pseudônimos dos dirigentes estudantis definem bem do que se trata ao final. Para ler e reler.

“O Assassinato do Presidente” – O enredo desse curioso conto versa igualmente sobre uma investigação. Diferente dos anteriores, o autor cuida mais de explorar as muitas visões ou interpretações das pessoas sobre um mesmo fato. Não por acaso, muitos juristas minimizam a importância da prova testemunhal. Além disso, nos faz rir com os jogos de palavras que a língua portuguesa pode ocasionar na descrição de algo. Sem falar na presença de Santo Agostinho e outros autores famosos nas lembranças do investigador. O desfecho, como convém a um conto bem escrito, surpreende.

“A Figueira” – Essa árvore e seus frutos são presentes na história há séculos. Sob sua sombra Buda teria tido a revelação. Cristo usou a árvore e seus frutos em suas metáforas. Bem, ela ressurge como argumento no embate entre os padres missionários e D. Maria Rosa Conceição Antunes. Ela, uma benzedeira de mão cheia e conhecedora de chás para várias finalidades, inclusive para evitar filhos. E aí é que a coisa pega. D. Rosa também tem uma bíblia e assim contra-argumenta as passagens do padre com outras em sentido contrário. O que não é difícil de encontrar no livro sagrado. No fundo, a discussão é entre D. Rosa e Roma, que os missionários representam. Ela pregando que o excesso de filhos não era boa coisa. Os missionários, especialmente o mais novo, ensinando que os chás anticoncepcionais de D. Rosa eram coisa do demônio. Acreditem, a luta atravessa os debates em Roma, até que o Papa concordou com a tese de que métodos naturais podiam ser usados para evitar filhos. Foi quando os missionários sumiram cedendo espaço e vez a um velho padre holandês. Novamente uma história bem contada por quem sabe contar histórias.

“O Rato na Balança” – Esse é o conto de encerramento. Vou fazer minhas observações em outra oportunidade. Ainda quero dizer que entre as quatro dezenas de livros de Deonísio da Silva merecem destaque os romances “Avante, soldados: para trás“ e “Stefan Zweig deve morrer”. Ambos premiados várias vezes e relançados pela Almedina, estão disponíveis nas principais livrarias físicas e virtuais. Esse último conto e os dois romances são apenas referências neste momento. Espero tratar deles mais detidamente em outra oportunidade.

(*) Salomão Ribas Jr (Cadeira 38)

Escritor, Radialista, Jornalista e Advogado

Livro Anita

FICHA TÉCNICA

Autor: Deonísio da Silva

Editora: Almedina

Dimensões: 21,0cm x 14,0cm x 0,6cm

Páginas: 118

Acabamento: Brochura

ISBN: 9786587017242

Edição: 1ª Edição

Data de Lançamento: 01/08/2021

Coleção: Fora de Coleção

Peso: 220 g